Cruella: uma análise do live-action da Disney

As reciclagens de antigos personagens da Disney têm sido uma tendência crescente nos últimos anos e a vilã mais estilosa do Estúdio não poderia ficar de fora. Cruella de Vil voltou com tudo em 2021 e quebrou o temor que o público tinha de ver mais um remake mal feito. 

O filme conta com muitas alusões à animação e ao live action originais, a outros filmes icônicos, sacadas semióticas geniais, referências de moda incríveis e tudo isso ao som de trilhas com muito rock, ambientando toda a estética ousada da personagem.

Vamos dar uma olhada em alguns detalhes, easter eggs e escolhas técnicas que podem ter passado batido quando você assistiu, mas que fazem toda a diferença!   Ah, vale lembrar que esse post vai estar cheio de spoiler, porque vamos analisar todas as sequências do filmes, então, se você ainda não viu o filme, corre assistir antes de ler!

Diferentemente de outros live actions que tentaram justificar ações imperdoáveis, por meio de histórias trágicas, Cruella assume sua tendência à psicopatia como traço de sua personalidade. Diversas cenas provocam empatia pelo que ela passa, mas o roteiro trabalha muito bem para mostrar que a personagem principal, Estella, sempre teve uma aversão por regras e padrões sociais e uma inclinação à maldade, vendo o despertar de sua verdadeira identidade de Cruella como uma libertação, e não como punição.

ALERTA: CONTÉM SPOILER

Os primeiros anos

Logo no início do filme conhecemos a infância de Estella, tendo nosso primeiro contato com sua personalidade e sua formação identitária, com direito a muitos detalhes importantes à história. Vemos cenas em que Estella aparece toda suja de tinta, remetendo imediatamente às cenas do filme original. O mesmo padrão de manchas pode ser visto quando seu professor marca com borrões seu histórico escolar.

Ainda criança, Estella seria levada ao mesmo parque em que o casal se conhece em 101 dálmatas, após ser expulsa da escola e sua mãe decidir que deveriam se mudar para Londres. A caminho da cidade, sua mãe promete levá-la à fonte para tomar chá, cena que retorna adiante no filme, quando a mãe de Estella já está morta e ela conversa com a fonte tomando um chá, como se estivessem juntas.

No caminho a Londres, a mãe de Estella fala que passarão em um local para pedir ajuda a um amigo, e fala para a menina esperar no carro. Alguns indícios de que algo ruim vai acontecer chamam a atenção. Na fachada, podemos ver três cães, que podem ser associados ao Cerberus, cão infernal que permite que almas entrem no submundo, mas nunca que saiam. Ainda na entrada vemos a palavra hell (inferno em inglês) grafada nos portões. A tragédia estava prevista.

Quando a mãe de Estella entra pelos portões, é para nunca mais sair. Três cães (dálmatas) derrubam-na de um penhasco, como se fossem Cerberus. Ao fundo podemos ouvir um ruído de chaleira, que mais tarde se revela ser o apito da Baronesa, ordenando que os cães ajam contra a mulher.

Estella foge para o parque, acreditando que a culpa pela morte da mãe é sua, e lá encontra Gaspar e Horácio, que passam a ser seus companheiros de roubo e de vida. Ela cresce se sentindo culpada pela morte da mãe e tentando reparar seu erro, sendo a Estella que sua mãe sempre quis que fosse.

Começando por baixo

Durante um roubo de hotel, já adulta, podemos perceber algumas referências a filmes de Hitchcock. Primeiro, Estella assiste a uma cena de um banco e nove destinos, onde conhecemos uma das inspirações da personagem de Cruella, décadas antes. Vale comentar que outra inspiração para Cruella foi a estilista Coco Chanel. Outra alusão ao diretor, é o nome que vemos no crachá que Estella veste: Norma. Remete ao personagem Norman Bates de Psicose, que se assemelha à história de Cruella por também ‘assumir’ a personalidade de sua mãe após sua morte.

Em seguida, vemos o amigo de Estella conseguir um emprego para ela ‘começar por baixo’, na loja Liberty, o que se mostra literal quando a câmera entra pelo teto do prédio e vai até o subsolo, revelando o momento Cinderela de Estella lavando o chão do banheiro. Aliás, a personagem também é associada à Cinderela em outra cena do filme, pelo estilista Artie.

O semblante de Artie nos lembra muito de David Bowie. Outra referência legal envolvendo seu personagem é sua fala “se você pode sonhar, eu posso vesti-la”, muito similar à frase “se você pode sonhar, você pode realizar”, atribuída a Walt Disney.

Voltando ao novo emprego de Estella, temos uma referência a seu figurino no live action de 1996, quando a garota tira o lixo e acaba se sujando, tendo um véu enganchado em seu cabelo, cobrindo seu rosto.

A vida dela começa a ter mudanças quando recebe a proposta de trabalhar com a Baronesa, uma renomada estilista de moda clássica, inspirada na super modelo sueca Lisa Fonssagrives e em marcas como Dior e Balenciaga. Você notou semelhanças entre as cenas seguintes e O Diabo veste Prada? A explicação é simples: uma das roteiristas do filme trabalhou nos dois longas!

Em uma das cenas em que Estella está trabalhando para a Baronesa, vemos ela conhecer Roger,  o advogado da Baronesa que seria um dos protagonistas de 101 dálmatas. A patroa menciona que Roger toca piano, ao que Estella comenta \”piano é legal\”, que parece ser uma referência ao papel da atriz em La la land. No filme original Roger também é músico e vale destacar que o cenário da casa de Roger é feito à semelhança da animação.

 

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O cenário da casa de Roger é feito à semelhança da animação.

De volta ao crime

Não muito depois, Estella descobre que a Baronesa tem o colar de sua mãe e decide roubá-lo em uma festa da patroa, usando um truque para revelar seu vestido, prenunciado cenas antes quando seu companheiro Horácio segura um bastão com fogo. A revelação do figurino também parece uma referência ao vestido de Katniss em Jogos Vorazes.Outro nome de que lembramos é o de Hussein Chalayan, expert em fazer roupas mudarem de cor, comprimento e formato no meio da passarela.

Os amigos de Estella entram no baile disfarçados de dedetizadores, enquanto no filme original se disfarçam de eletricistas para roubar os filhotes.

Estella está distraindo a Baronesa enquanto seus companheiros tentam roubar o colar do cofre, mas ao perceber que a patroa está usando a joia, tenta se esquivar da situação, levando o colar. Uma confusão com ratos se desenrola no salão e, ao ver a Baronesa usando o apito para dar ordem de ataque aos cães, descobre que foi ela que matou sua mãe. Ela é escoltada pelo mesmo funcionário que a expulsou do baile quando criança, e depois entendemos que ele estava tentando defendê-la na ocasião.

Para escapar, Estella rouba um carro, onde vemos que o automóvel, a maneira como dirige e os enquadramentos são muito parecidos com a animação.

Mudando o jogo

A partir deste ponto do filme, Estella assume a personalidade de Cruella, pois acredita ser a única maneira de resolver a situação. Ela passa a agir de forma maldosa com os amigos e ordena que eles façam seu trabalho sujo, a começar por roubar os três dálmatas para descobrir qual deles engoliu seu colar.

Na van, que é bem similar com a que usam no filme original, os amigos comentam sobre como os donos são muito parecidos com seus cães, nos lembrando imediatamente da cena inicial de 101 dálmatas. Ao roubar os cachorros, usam o mesmo truque que usavam na cerca quando crianças para que Wink, o cãozinho caolho, escape dos dálmatas. 

Agora vamos à ascensão de Cruella como uma ameaça à Baronesa e seu império. Enquanto a patroa é símbolo da moda clássica, inspirada na super modelo sueca Lisa Fonssagrives e nas marcas de luxo Dior e Balenciaga, Cruella representa vanguarda e moda de ruptura. Vamos ver algumas curiosidades sobre seus modelos: O rosto pichado está em sintonia com a tendência de Viktor & Rolf em 2008, onde modelos tiveram escritos em seus rostos;

O vestido de casulos, feito por Estella e roubado pela chefe, é inspirado no vestido feito por Alexander McQueen para seu último desfile, de verão 2010, e usado por Lady Gaga no clipe da música “Bad Romance”;

O vestido de lixo remete a Vivienne Westwood, que esteve em um lixão em 2011 criticando o descarte da moda;

O modelo com jornal em um espartilho armado com um corte de princesa, tem volumes e construções que lembram tanto Vivienne Westwood quanto o mais clássico Alexander McQueen.

Com referências à história da moda, além das inspirações em Vivienne Westwood, com seu estilo punk couture, percebemos que os designs criados por Jenny Beavan, estilista da produção, sofrem influência de John Galliano, Cristóbal Balenciaga e na Vogue dos anos 70. O street style inglês inspira looks da fase jovem de Estella.

Como se já não bastassem todas essas referências ao mundo da moda, temos ainda um funcionário da baronesa que parece Yves Saint, grande nome da moda que carrega um pouco da mesma loucura bipolar que percebemos em Cruella.

O cabelo de Cruella é uma forte mostra das mudanças pelas quais a personagem passa. O cabelo ruivo e comportado, preso em coque, da doce Estella, se modifica para o penteado rebelde e emblemático de Cruella, um dos elementos mais marcantes da vilã e que representa suas duas personalidades, seu lado bom vindo de sua mãe adotiva, e sua psicopatia herdada da mãe biológica. 

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\”Anita, darling\” se tornou uma das frases mais famosas de Cruella

Toques finais

Se você acha que chegamos ao fim, calma! Ainda temos alguns detalhes bem interessantes para comentar:

  • Durante o planejamento da vingança de Cruella, a cena em que os cães assistem TV com Horácio é muito similar à cena do filme original;
  • A piada que Cruella faz “daria pra fazer casacos maravilhosos com eles” remete ao momento do filme de 1996 em que a vilã fala “Sem dúvidas eles dariam um casaco excepcional”;
  • Quando a morte de Cruella é noticiada, os jornais chamam-na de ‘assassina de dálmatas’, status que ela não tenta desmistificar e nos leva a questionar quanto da personalidade que vimos no filme original é real ou apenas uma fachada que ela gosta de manter;
  • Na cena em que Cruella liberta os amigos da prisão, ouvimos uma buzina semelhante ao som do filme original. Outra referência que o mesmo momento traz é a invasão da delegacia em O exterminador do futuro;
  • Quando Cruella descobre que o nome do carro que Horácio conseguiu para sua grande vingança é DeVille, ela decide adotar como seu sobrenome, modificando para De Vil, associação à palavra devil, diabo em inglês.

Grand Finale

O último truque de Cruella é uma armação para que a Baronesa tente lhe matar da mesma forma que assassinou sua mãe adotiva, ocasião em que usa um paraquedas para sobreviver. É uma forma doce e irônica de obter sua vingança, ao mesmo passo em que cumpre a promessa a Gaspar de não matar sua inimiga. Também mostra que a maldade de Cruella é diferente da que Baronesa apresenta, pois dentro de seus critérios, ela ainda se atém a alguns limites éticos que não quer ultrapassar, seja por si mesma ou para agradar a seus amigos e à memória da mãe adotiva.

Quando Cruella vai morar na mansão, ela tira “man”, do portão que dizia “Hellman Hall”. Agora a piada está completa e o local assume o nome de corredor do inferno.

Por fim, após os créditos, vemos Anita e Roger recebendo filhotes de dálmatas, um prenúncio ao filme original. Vemos ainda Roger compondo sua música sobre Cruella e compreendemos que seu desdém por ela tem a ver com ela ter causado o seu desemprego, mais um exemplo de como os criadores do filme pensaram em todos os detalhes.

Ufa, é referência pra caramba!

E aí, você também ficou de boca aberta? Talvez um dos motivos para o filme ter ficado tão bem feito tenha a ver com a maravilhosa Glenn Close, Cruella no filme de 1996, que foi produtora executiva do novo longa. Mas por quaisquer motivos que sejam, nós só estamos muito agradecidos por esse grande filme que veio para trazer momentos muito divertidos e questionar a indústria da moda tradicional e a ideia de que um personagem só pode ser bom ou mau.